14 de julho de 2015

Morar é direito para quem?

Ampliação do Aeroporto Leite Lopes em Ribeirão Preto e a violação do direito à moradia

Imagine que a qualquer momento dessa semana policiais chegassem em sua rua, lhe mostrassem um papel e dissessem que você tem que sair da sua casa. Não existe negociação e se você reclamar pode ser pior. Imagine que a sua casa, que é também o seu lar, será destruída e tudo que você construiu ali, das paredes às suas memórias familiares, terá que ser deixado para trás. Agora imagine que você não tem para onde ir. Não existem parentes, nem abrigo, e nem outra casa para ficar. Você, seus filhos, sua mãe, seu cachorro e todas as suas coisas. Você não tem dinheiro para construir outra casa e muito menos para alugar um hotel e passar a noite. Você está na rua e as ordens de despejo vieram de pessoas que você nem conhece e que também não te conhecem. Não sabem da sua história e nem como você vive. Seu inimigo é invisível, mas poderoso.

Parece absurdo, e é. Parece mentira, mas não é. E pode acontecer, nessa semana. Pode acontecer com cerca de 150 famílias que vivem nas comunidades de João Pessoa e Nazaré Paulista, em Ribeirão Preto, São Paulo. Fui incumbida de escrever algo sobre essa história e tenho certeza que essa é uma das missões mais difíceis da minha vida. Eu, que sempre tive casa e morei com dignidade sem nunca correr o risco de me tirarem daqui, tento falar do desespero e da luta dessas pessoas. 

Talvez o que eu devesse fazer era contar essa história do jeito que aprendi na faculdade. Escrever uma matéria jornalística, com aquela estrutura engessada em que devemos contar os fatos e fingir que somos neutros. Mas ninguém é neutro, nunca. E nesse caso, infelizmente, o jornalismo das mídias mais vistas e lidas da cidade, além de não ser neutro, escolhe o lado oposto ao povo. O lado de contar que nas terras onde moram essas 150 famílias será feita a ampliação de um aeroporto de cargas que parece quase mágico de tão bom para a cidade. Um aeroporto que trará lucros altíssimos, desses que é até bonito de se ouvir falar na televisão. Ribeirão Preto é uma mercadoria boa de vender. Uma cidade tão rica que acaba sendo pobre. Uma cidade onde tanta gente manda, que é desgovernada. Lucro para quem? Lucro por quê? Luto por quem? Luta pra quê?

Moradores da Comunidade reunidos - Foto de divulgação

Chamam de remoção ou de reintegração, mas o fato é que o processo de expulsão dos moradores das comunidades João Pessoa e Nazaré Paulista, além de conter várias ilegalidades jurídicas, é desumano. Nós, que temos casa e não corremos o risco de sermos arrancados dela sob força policial, somos privilegiados. Por mais que haja esforço e empatia, nunca saberemos o que é o medo e a esperança que essas pessoas e tantas outras país a fora, têm nesse momento. 

Eu pude olhar nos olhos de algumas delas, ouvir suas queixas, dúvidas e a vontade de luta que permanece. Permanece mesmo sabendo que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco. Mesmo sabendo que quem ganha salário mínimo quase não tem chance em briga com quem tem mais de seis zeros depois da vírgula no saldo bancário. Mesmo sem conhecer as leis, mas sabendo claramente o que é certo e errado. Mesmo entendendo o que é justo e o que não é desde sempre. Eles sabem e nós também sabemos que o que estão fazendo com eles é injusto. 

Moradores em reunião - Foto: Paulo Honório

Uma terra desocupada há mais de trinta anos. Tinha dono? Tinha, mas os donos morreram. Morreram sem deixar escrito em papel algum um destino certo para ela. Ela estava vazia. Eles e elas estavam sem casa. Ocuparam, cuidaram, produziram, fizeram morada e memória. Trabalharam. Filhos cresceram, mulheres engravidaram, netos vieram, moços casaram. Família. Família igual eu tenho, igual você deve ter. Povo, igual eu sou e igual você é. Agregados, vizinhos, amigos e parentes. Gente que veio e ficou. Ficou porque não tinha para onde ir, e ainda não tem se de lá os tirarem. Morar é direito. Direito para quem?


Toda essa gente é diversa. São pretos, brancos, jovens, velhos e crianças. Gente que ainda tá na barriga da mãe e não sabe que antes de nascer já estão lhe roubando direitos. Gente que é diferente, mas que se une na semelhança: ser pobre, ser o lado mais fraco da corda. Mas essa gente tem mais em comum, por saberem desde sempre o que é justo e o que não é, sabem que estão sendo injustiçados e não enxergam outra alternativa a não ser a luta.

Márcia, Zé Augusto, Marias, Joãos e até aquele que a mãe ainda não deu nome. De fracos, não têm nada. Acreditam que a tal juíza que pode decidir pela vida deles, mas que nunca viu a cara daquelas pessoas ainda pode ser justa. Acreditam que as televisões e jornais que já omitiram suas histórias, ainda possam ouvir se todos gritarem juntos. 

Eu acredito neles e por isso escrevi esse texto. Acredito que de alguma forma, mesmo com tanta desigualdade e privilégios, ainda é possível se reconhecer povo. Eu, você que lê, seu vizinho para quem você pode contar essa história, os moradores de lá, os professores da escola, os médicos do bairro e quem sabe até a tal juíza que pode fazer justiça. 

Nessa luta tem gente de todo tipo. De casa grande, casa pequena, casa cheia, casa só de casal, casa com muros, casa que vive aberta e casa onde sempre cabe mais um. Só quem mora é que sabe como é. Numa cidade onde morar com dignidade ainda é privilégio, quem tem demais parece que cega. E quem tem de menos parece invisível. Se você ainda enxerga, ajude a visibilizar essa luta. Compartilhe essa história do jeito que você quiser contar, mas faça a ser ouvida e que os gritos que ecoarem por aí sejam de vitória do povo. Comunidade João Pessoa e Nazaré Paulista resistem!


Conheça alguns dos moradores e entenda a situação no vídeo:



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